terça-feira, novembro 01, 2005

O que diz Molero

Hoje, acabei de ler pela segunda vez este brilhante livro de Dinis Machado. Toda a história, todo o relatório de Molero, são de levar qualquer um às lágrimas de tanto rir. Melhor que ler este livro, é ver a peça representada por dois génios do humor de palco, os senhores António Feio e José Pedro Gomes (que se por algum infortúnio vierem ler este blog, peço-vos que voltem a passar esta peça!).
Aqui vos deixo com Molero:

"Temos a seita dos calmeirões, os Vai ou Racha", disse Austin, "que já tinham sido os Malhoas e os Roquetes, e que mais tarde seriam os Sertórios. O rapaz via-os, rua acima, rua abaixo, gingando o corpo, fazendo gestos vagamente obscenos para a janela das costureirinhas, combinando petiscadas, provocando quem passava, uma discussão, uns tabefes, umas sandes de presunto, uns copos de vinho tinto, a ronda nocturna pelas casas de prostitutas, as últimas anedotas contadas sob a lua alta e as estrelas, o jogo das moedas à luz esverdeada do candeeiro a gás, fantasmas movendo-se, os últimos de cada dia, na tranquilidade do bairro adormecido.
Molero enumera-os: o Pé de Cabra, que era o chefe e fazia contrabando de tudo, desde relógios suíços a cigarros Camel e Lucky Strike, que tinha como passatempo favorito dar carolos, pancadas com os nós dos dedos na cabeça deste e daquele, principalmente dos mais miúdos, para enrijar a moleirinha, dizia ele; o Gil Penteadinho, que vivia de mulheres, jogva à pancada com a mãe todos os dias por causa disso e andava sempre a atirar uma moeda ao ar como, depreende Molero, George Raft em Scarface; o Bexigas Doidas, que não era bexigoso, como se poderá supor, tinha uma doença de pele e coçava-se muito, às vezes os outros coçavam-lhe as costas porque ele não chegava lá; o Lucas Pireza, que ganhava todos os concursos de tango nas sociedades de recreio, tinha o pai na Miltra e dava cem toques na bola com o pé esquerdo sem a deixar cair; o Metro e Meio, que nem Metro e Meio parecia ter, crescia para os lados, não para cima; o Tonecas Arenas, que usava sombrero, falava de touradas que nunca tinha visto, nunca viu nenhuma, vendia imagens religiosas à porta das igrejas, e també fotografias pornográficas para eventuais turistas depravados, tudo isso à comissão, o fabricante era o mesmo; o Peito Rente que tinha uma expressão muito dele quando achava bem qualquer coisa, dizia isso é rachmaninófico, é rachmaninófico, e golfava sangue quando chegava o Outono.
Uma divisa: passe ao largo e não chateie, que já tinha sido outra, no tempo dos Malhoas, está aqui entre as pernas mas não é para ti, rua acima, rua abaixo, uma paragem nesta esquina, outra naquela, um dia passaram a ser os Sertórios, andavam de camisa preta e cinto reluzente, compraram discos de marchas militares e tocava-nos no gramofone roufenho da Miquelina Fortes, fundaram a Liga dos Amigos da Falange, a sede era na carvoaria do Galego, perguntavam de repente: tens alguma coisa contra a Falange?, o Chinês que vendia gravatas dizia que não com a cabeça, o Marca-Passo, que andava há seis anos à procura de emprego, dizia que a Falange era o máximo, então o Pé de Cabra dizia se não tens nada contra a Falange dá cá qualquer coisa, uma moeda aqui, outra ali, o Chinês às vezes dava uma gravata, depois a gravata aparecia na camisa prea do Gil Penteadinho, nunca se soube como é que o dinheiro ia para a Falange, ou qual Falange, a de cá ou a de lá, ou o que era isso da Falange, mandaram imprimir rifas na tipografia do Celestino, que era para a Falange e ele tinha de ajudar, o Celestino disse que a falange dele era a mulher e os filhos, o Gil Penteadinho disse que aquilo era conversa de bolchevista, depois chegaram a acordo, davamtrês rifas por semana ao Celestino, podia ser que lhe saísse, rifavam uma camisa de seda, um bidé com arabescos dourados, um frasco-gigante de fixador para o cabelo marca Ramon Novarro, uma colecção completa da Gazeta do Fado, uma caldeirada para três no Passa-Fome, depois havia as trocas, a Miquelina, a quem saíra a colecção da Gazeta, trocava com o Raul Pechisbeque, a quem saíra o bidé, a caldeirada para três saiu ao Vôvô Resmungas, que quis comê-la sozinho, apanhou uma congestão e ia morrendo, que o levou ao hospital foi o Bigodes Piaçaba da casa de chapéus-de-chuva, tudo quanto era complicações, dores de barriga e falta urgentíssima de dinheiro ia desaguar na loja do Bigodes Piaçaba, que era contra o Governo, parecia estar sempre zangado e tinha a cara vermelha, passava a vida a levar gente ao hospital na sua carripana a cair aos bocados, as mulheres grávidas, as crianças anémicas, o César Louco quando tinha ataques, a Maria Bicharoco quase cega, o Vôvô Resmungas que comia de mais, vendia chapéus-de-chuva e também berlindes, os berlindes acabava por distribuí-los pelos miúdos, o rapaz chegou a ter uma boa colecção, com o Nuvem, o Contra-Nuvem, o Lua, o Mundo, o Contra-Mundo, o Bandeira Nacional, o Corsário, o Tempestade, o Ondas, o Arco-Íris, o Papa, os mais belos e temidos abafadores de berlindes simples, que eram de uma tonalidade acizentada, feitos em série, baratos e humildes.
Os Sertórios patrulhavam a rua, mais um copo e umas sandes de presunto, faziam a saudação de braço estendido quando encontravam o Pimentel, que era paisana da Legião e sabia muito de coisas corporativas, diziam a gente amanhã vai para a Guerra de Espanha e depois de amanhã já não há guerra, depois morreu o Peito Rente, chegara o seu último Outono, os Sertórios foram perguntar ao Celestino como é que se escrevia ao certo rachmaninófico, o Peito Rente levou na carreta uma coroa de flores que dizia: os Sertórios estão contigo, um abraço rachmaninófico.Mas isso de serem os Sertórios foi mais tarde."

1 comentário:

colher de chá disse...

Que vontade de tb eu o ler pela segunda vez!
:)